Calma, calma, a ideia não é ensinar como agredir os coleguinhas de empresa com este artigo. Mas antes de chegar ao uso efetivo das artes marciais como uma ferramenta da formação profissional e um meio para aumentar a produtividade, preciso contar um pouco da minha história e porque acho que posso falar sobre o tema.
“Quando eu era criança pequena lá” na Vila Operária em Maringá, no Paraná, minha mãe e meu pai não sabiam mais o que fazer para me acalmar um pouco e terem sossego. Nos anos 80, não existiam tantas síndromes, disfunções, etc, mas descobri depois de adulto, que MUITO provavelmente eu fui uma criança hiperativa (minha mãe tem ABSOLUTA certeza disso). Apesar de não haver um diagnóstico médico formal, o pediatra que atendia a família receitou o tratamento: “Vocês têm que fazer esse menino gastar muita energia!”. Agradeço demais esse conselho dado a meus pais e tenho certeza que eles agradecem ainda mais, do que eu.
Bem, mas prescrição médica não se questiona, se segue e foi o que o Dr. Lizeu e a Dona Maria José fizeram. Futebol, natação, bicicleta, skate e o karatê*, pois alguém comentou com eles que artes marciais eram boas para gastar energia.
*A grafia correta em Português é caratê, mas em respeito à origem, histórico e relacionando com outros termos japoneses, sempre com “k”, me permito grafar dessa forma, como aliás faz a absoluta maioria dos mestres e praticantes.
Iniciar no karatê não foi nenhum sacrifício para um aficionado pelos filmes do Bruce Lee. Era demais aprender aqueles movimentos que pareciam tão perigosos e até acrobáticos. Acho que foi amor à primeira vista, tanto de mim pelo karatê, quanto do karatê por mim. No começo, como em toda aula infantil, era muita brincadeira, exercícios de mobilidade, lateralidade e coordenação motora, mas o elemento central, que será importante nesse texto, já estava lá, a DISCIPLINA.
Até hoje vejo pais na primeira aula dos filhos impressionados com o Sensei* conseguindo fazer eles ficarem quietos em formação já no primeiro contato com o dojo*. Sempre observo isso. Eles se olham, comentam baixinho entre si e depois falam com os outros pais, “Como pode meu filho ficar tão parado? Nunca tinha visto ele assim!”. Presenciei essa cena dezenas de vezes e é algo sempre único e que me fez refletir no impacto que eu também tive aos 6 para 7 anos de idade, nas primeiras aulas. A forma do Sensei falar, sua segurança, o ambiente, o uniforme, o exemplo dos outros alunos, a disposição dos elementos no espaço, tudo colabora com a ordem e etiqueta. É por isso que funciona instantaneamente. Toda a situação emana organização, postura e boa forma.
*Sensei = Professor ou Mestre; *Dojo = “Do” significa caminho e “Jo”, lugar, então Dojo é o local onde se trilha o caminho, já remetendo às artes marciais como ferramentas de formação de valores humanos;
Mas voltando a história, o karatê realmente se encaixou como uma luva, tinha uma linguagem semelhante a dos filmes do Bruce (para uma criança de 6 anos, chinês e japonês são iguais… Talvez para uma de 40 anos ainda sejam muito parecidos), um líder que era O CARA, bom de briga e que impunha respeito, um lugar onde os pais não mandavam nada, nem eram permitidos de ficar muito próximos, para não distrair os alunos e muita, muita atividade diferente. Coisas novas para aprender e ZERO de previsibilidade. Ninguém tinha certeza sobre o que teríamos nas aulas, podia ser uma repetição infindável de movimentos, podia ser exercício físico intenso, podia ser kata*, podia ser kumitê* (tudo que os meninos queriam era um lugar onde fosse permitido “brigar”) ou podia ser uma conversa sobre a história do karatê e sua filosofia. Enfim, não dava para faltar, pois vai que justamente naquele dia, o tema seria o de seu maior interesse. Era demais! E foi demais até os 18 anos de idade e a faixa marrom (uma antes da preta), quando a mudança para cursar a universidade forçou um hiato no “Do” (caminho).
Nesse período de 12 anos de prática, foram muitas amizades, viagens para competições, apresentações em ginásios e escolas, alguns desentendimentos, algumas mudanças de local do dojo e de instrutores, mas ela sempre estava lá, não faltava em nenhuma ocasião, a boa e velha DISCIPLINA. Além dela, entrou também na equação outra companheira inseparável, a busca pela forma perfeita. Em especial para mim que, desde o começo, me apaixonei pela prática do kata*. Aqui tenho que me desculpar, pois não posso deixar de dar uma “viajada na maionese”. Kata é uma sequência de movimentos em uma luta imaginária contra vários oponentes, que atacam de diferentes direções. Alguns dizem que é como uma dança e não deixa de ser mesmo, pois na dança também os passos são numa sequencia conhecida e se busca a perfeição dos movimentos. O que mais chama atenção na prática do kata é que são necessárias milhares (sim milhares) de repetições, para se chegar a um nível verdadeiramente elevado de execução. Tive a felicidade de treinar em nível mais alto e competir na modalidade e posso afirmar que é coisa de maluco. Acredito que seja comparável a esportes como salto ornamental, ginastica artística e tiro. Um único movimento pode ser realizado 100 ou até 300 vezes num único treino e um kata completo pode ter mais de 50 movimentos. Então, imagina a paciência e DISCIPLINA (ela de novo) que é necessária para se atingir o alto nível no kata.
*Kata = Forma de fazer ou a forma correta de se fazer. O termo se aplica a tudo, desde um arranjo de flores, passando por uma dança, até a cerimônia do chá. Ele incluí sempre um estudo e dedicação minuciosos da melhor forma de se fazer algo e o ensino dessa forma única e imutável, ao longo das gerações.
A outra modalidade, já bem mais conhecida de todos é o kumitê, que simplesmente significa combate, ou luta. Há diferentes modalidades de kumitê, desde algumas com movimentos combinados entre os oponentes, na qual o objetivo é uma execução tão perfeita e efetiva, que mesmo o adversário sabendo qual será o ataque, ele seja indefensável. Há também a modalidade livre, onde vale praticamente qualquer técnica disponível, sendo possível se realizar em diferentes graus de intensidade. O treinamento do kumitê é bem mais dinâmico e menos repetitivo, mas a necessidade de um volume de treino muito alto e constante demandam também extrema DISCIPLINA (ah ela…), considerando que os ferimentos e lesões são mais frequentes.
Pois é, já deu para perceber que décadas treinando e aprimorando a DISCIPLINA (de novo…), deixa marcas na formação da personalidade de uma pessoa, não é? Sim, profissionais com longo histórico de prática de artes marciais têm essa valência, ou “soft skill” MUITO desenvolvida. São capazes de suportar o insuportável, de insistir, se dedicar e não desistir até chegar perto da perfeição. Além dela, outra muito importante é a resiliência, a capacidade de permanecer inabalável apesar dos contratempos e dificuldades ao longo do caminho.
Falando em profissionais de RH, gostaria de contar uma rápida passagem de um processo seletivo que participei. Após as chatíssimas etapas iniciais, estava em reuniões interessantes com executivos e psicólogas. Após uma conversa em profundidade com uma delas, falando obviamente de trabalho, projetos e entregas realizadas, ela lançou a pergunta/afirmação: “Nossa, você realmente é alguém bastante centrado e disciplinado, por acaso você é praticante de algum esporte ou arte marcial?” Caraca, que mulher é essa? Será que ela me conhece? Já andou até ligando para minha mãe? E digo que isso aconteceu por volta de 2007, quando eu nem tinha Orkut, quanto menos Facebook. Então essa informação estava restrita a meu círculo mais próximo de relacionamento, pois eu não andava pelas ruas vestindo meu dogi* e minha faixa. Fiquei mesmo impressionado com a pergunta que me pegou de surpresa. Após responder, eu quis saber como ela tinha chegado a essa pergunta e ela calmamente respondeu que ela tinha grande experiência em recrutamento e seleção e que por diversas vezes profissionais com alto desenvolvimento da disciplina tinham um histórico nas artes marciais ou em esportes de alto rendimento (é realmente lindo quando nos deparamos com esses profissionais que executam seu trabalho com maestria, como essa psicóloga, não é?).
*Dogi = “Do” que é caminho e “Gi” que é uniforme formam “a roupa que se trilha o caminho”
Após essa experiência da seleção, em várias outras, o tema da disciplina e perguntas sobre como desenvolvi essa valência surgiram e a história era novamente contada, sempre com bom grau de valorização por parte dos recrutadores. Pra ser sincero, por muitos anos, de certa forma escondi o fato de ser karateca de minhas relações sociais e profissionais. Eu tinha muita insegurança e receio de que isso me estigmatizasse, como alguém que gosta de violência ou que se achava fortão. Ainda mais no meu caso, que tenho apenas 1,68 m de altura e sou pouco provido de músculos, por assim dizer. Realmente, eu tinha vergonha de falar do assunto e só algumas pessoas sabiam do tema e acompanharam alguma aula ou competição minha. Foi pra mim um processo de aceitação e desenvolvimento de auto-estima apresentar esse lado de minha trajetória de modo aberto, sem me importar com os paradigmas das pessoas sobre quem pratica artes marciais. Assim, esse artigo é também parte desse processo de amadurecimento, pois hoje me sinto confortável em falar disso para meus contatos profissionais, enaltecendo inclusive como o karatê foi importante e pode beneficiar na formação de crianças e jovens, que serão profissionais das mais diversas áreas.
O tema é encantador e talvez possa voltar aqui com outros enfoques, como os benefícios para a saúde física, a redução de dores, de cansaço, de limitações de movimento, etc. Ou para a saúde mental, como uma válvula de escape para as pressões do trabalho, uma forma de retornar o equilíbrio mental, ou mesmo para o aumento da capacidade de concentração. Talvez possa falar sobre como é possível aprimorar a capacidade de “leitura” do ambiente e das pessoas, a maior empatia com o outro, a relação de discípulo e mestre e o autocontrole, em situações de estresse.
Por fim, espero que tenha trazido a possibilidade de reflexão sobre como práticas esportivas e, em especial, de artes marciais podem ser importantes e usadas para o desenvolvimento de “soft skills”, como disciplina, resiliência e autocontrole, cada vez mais fundamentais para os profissionais de alta performance.
Oss!